Número 2 – fevereiro de 2011
Incapacitação de tripulação de voo
Sumário
ü Doenças
Gastrointestinais
ü Doenças Cardíacas
ü Hipoglicemia
Observação: será
publicado em partes. A primeira é Doenças Gastrointestinais.
A
abordagem estatística à questão da incapacitação do piloto de transporte aéreo
parece demonstrar a ausência de qualquer risco significativo para a segurança
aérea. Entretanto, as investigações dos casos de incapacitação de piloto
revelam a existência de fatores que poderiam contribuir para acidentes, e tais
ocorrências são tratadas como incidentes graves.
“Incapacitação
de piloto” refere-se ao efeito na atividade do piloto da deterioração de
qualquer estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica. O exame
clínico é especificamente desenhado para prevenir o risco de incapacitação
ocorrer em voo ao selecionar candidatos cujas os problemas de saúde, se houver,
não apresentem obstáculos aparentes ao voo. Entretanto, a condição médica de um
piloto evolui com o tempo devido à idade, ao estilo de vida, ao surgimento de
doenças crônicas ou de enfermidade temporária etc. O risco tem que ser avaliado
de forma dinâmica pelos próprios pilotos; eles devem estar alertas a qualquer
anomalia que possa impactar, ainda que por pouco tempo, suas habilidades de
voar uma aeronave.
Um dos
corolários de trabalhar como tripulante é que ele limita o impacto na condução do
voo se um dos pilotos fica incapacitado de repente. Entretanto, esse benefício
pressupõe um certo número de condições, em particular que a condição clínica
dos pilotos não seja afetada ao mesmo tempo, como por exemplo no caso de
intoxicação alimentar, uma doença sazonal ou a deterioração no ambiente do
cockpit (poluição, hipóxia etc.).
Os
incidentes apresentados nesta edição da revista Incidents in Air Transport
(algo como Incidentes no Transporte Aéreo) mostram que os riscos inerentes às
condições fisiológicas podem, às vezes, ser subestimados uma vez obtido o certificado
médico (nosso CMA). A decisão de não voar, devido ao que parecem ser pequenos
problemas de saúde, é bem difícil de tomar, contudo tais problemas podem
rapidamente se tornar incapacitantes e atrapalhar a condução do voo.
Doenças
Gastrointestinais
Primeiro caso
Histórico do Voo
Em 13 de
fevereiro, durante uma escala, o copiloto caiu doente com gastroenterite,
levando à desidratação. Tomou remédio e bebeu bastante água tão logo que pôde.
No dia seguinte, algumas horas antes do traslado para o aeroporto, percebeu uma
melhora gradual nos sintomas. Sentiu-se capaz de assumir o voo transoceânico e
embarcou no ônibus que levava a tripulação para a aeronave. Durante a
transferência, entretanto, teve um outro problema e finalmente decidiu não
assumir o voo. O check-in dos 357 passageiros foi interrompido e o voo
cancelado.
Segundo caso
Histórico do Voo
Durante a
fase de cruzeiro, em um voo de Dakar para Paris, em 21 de fevereiro, o
comandante teve dores abdominais violentas e náusea. Um médico, atendendo à
solicitação da cabine, aplicou algumas injeções que aliviaram os sintomas
momentaneamente. O comandante retornou aos controles por mais ou menos uma
hora, após o que os sintomas retornaram. Foi tratado da mesma maneira e
descansou até a descida. Então permaneceu sob vigilância do médico. O restante
do voo prosseguiu normalmente.
Informações adicionais.
A
investigação revelou que o comandante tinha comido ovos e produtos preparados à
base de carne por volta das 11h, que começou a sentir-se mal em torno das 17h e
que sua condição havia piorado por volta das 21h, mais ou menos uma hora antes
da decolagem.
O
comandante disse que tinha consultado um médico no solo e havia obtido aval
para realizar o voo. Acrescentou que antes do embarque, tinha verificado que
havia um médico a bordo assim poderia buscar ajuda médica se a necessidade
surgisse.
Lições aprendidas.
Quais são
os critérios que entram na decisão de voar ou não? Qual o peso atribuído à
condição clínica do piloto? Qual consideração deve ser dada às pressões
comerciais, notadamente durante escalas? Não há respostas claras para estas
perguntas. O piloto afetado é a única pessoa que pode tomar a decisão — uma
decisão delicada na falta de tripulação reserva — não assumir o voo. Não
poderia beneficiar-se de uma opinião externa de um médico da aviação empregado
pela aérea, por exemplo através de um OCC (Centro de Controle Operacional),
para ajudá-lo a decidir?
A situação
é suficientemente rara para as operações continuarem substancialmente
inalteradas. Assim como é normal executar uma arremetida na ocorrência de uma
aproximação desestabilizada, o cancelamento de um voo também deveria ser visto
como uma boa solução.
Terceiro caso
Histórico do Voo
Durante um
voo de Paris, Charles-de-Gaulle para Ivalo (Finlândia), em 15 de dezembro, o
comandante em treinamento era “piloto em instrução e estava sentado na direita,
executando um Cheque em voo no piloto em comando (também comandante) sentado na
esquerda.
No final
do voo, que durou mais que três horas, a tripulação foi autorizada a executar a
aproximação NDB 04. Já era noite. A descida foi atrasada. A aeronave passou o
FAF (Fixo de Aproximação Final) em alta velocidade e não totalmente
configurada. Aproximou acima da rampa de planeio e ligeiramente à direita do
localizador.
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Figura 1 - Trajetória do voo |
A 1.700 pés, para
abandonar uma aproximação não estabilizada, o instrutor solicitou uma
arremetida para ingressar na perna do vento da pista 22. Entretanto,
para ganhar tempo, mudou sua estratégia e solicitou continuar a curva à
esquerda para retornar ao curso do localizador. Informou ao ATC, que orientou
que subisse imediatamente para 2.800 pés para evitar obstáculo. Durante esta
manobra, o piloto em comando passou do rumo da aproximação e saiu da área de
proteção. A tripulação completou a aproximação visualmente.
Trajetória do voo
Informações adicionais.
Quando
iniciou o voo, o comandante sob supervisão estava sofrendo dos estágios
iniciais da gastroenterite. Devido à natureza do voo de instrução, e da
dificuldade de reprogramar tais voos, preferiu não informar ao instrutor. Este
último não percebeu a sutil incapacitação1 do
"estagiário".
Lições aprendidas.
O piloto
sob supervisão analisou a relação risco/benefício sozinho. Era difícil para ele
declarar sua incapacitação, porque o contexto representava que era importante
para ele assumir o voo e não revelar nenhuma fraqueza.
Também foi
difícil para o instrutor perceber a incapacitação do piloto, porque além de
sutil, ele estava ali para avaliar as habilidades e a capacidade de tomar
decisões do piloto estagiário.
Quarto caso
Histórico do Voo
Durante a
fase de cruzeiro de um voo em 31 de dezembro, o copiloto sentiu dores
abdominais e deixou o cockpit para ir ao toalete. O comandante ouviu um barulho
abafado e, olhando para o monitor CCTV, viu o copiloto caído no corredor. Um
comissário viu o copiloto cair e bater a cabeça na borda da divisória, sem
consequências graves. Com a ajuda dele, o copiloto foi ao toalete e retornou
para o seu assento.
O
procedimento para incapacitação de membro da tripulação foi aplicado até que a
aeronave parasse no pátio: o assento do copiloto foi afastado, o sinto de
segurança foi travado, e um membro da tripulação da cabine de passageiros
permaneceu no cockpit.
Informações adicionais.
Antes de
assumir o voo, o copiloto não tinha percebido nenhum sintoma em particular,
apesar de todos estarem mais atentos depois que o comandante com quem ele tinha
voado a perna de saída foi substituído para este voo, após sentir-se mal devido
à fadiga. A investigação confirmou que a fadiga do comandante original tinha
persistido por um dia, mas sem nenhum outro sintoma. Pode ser que o copiloto
tenha pego algo do comandante e que, talvez devido à altitude, os sintomas
realmente se desenvolveram no caso dele.
Conclusão
O
comandante original tinha decidido não voar. Não tivesse ele tomado aquela
decisão, os sintomas poderiam ter piorado durante o voo, assim como o copiloto
estava começando a sentir dor abdominal. Ambos os pilotos teriam ficado
incapacitados, colocando a segurança do voo em risco.
Lições aprendidas.
Gastroenterite
é vista quase como uma causa rotineira de incapacidade em voo. Quando os
sintomas começam antes de assumir o voo, o piloto tem que avaliar a relação
risco/benefício antes de decolar. Critérios de decisão tais como: pressão
comercial ou um voo supervisionado, como nos exemplos escolhidos, podem incitar
o piloto a assumir o voo a despeito de estar ciente dos sintomas. Mesmo se a
condição seja clinicamente benigna, os sintomas que começam antes do voo
geralmente pioram durante ele, devido à altitude. A tripulação deve ter em
mente que, em voo, o risco de enfermidade devido à desidratação ou tônus vagal
pode levar à falta de responsividade durante uma fase crítica do voo, e até
mesmo - como no quarto caso - a uma perda repentina de consciência.
Gastroenterite pode ocorrer devido à intoxicação alimentar, especialmente
durante as escalas. Esta forma de infecção é bem conhecida das tripulações, que
ajustam seus hábitos alimentares adequadamente. O caráter sazonal das epidemias
de gastroenterite, entretanto, é geralmente menos conhecida. Sua sazonalidade
(veja o gráfico) pode levar tripulações a ficarem atentas, durante o inverno na
França, a doenças imprecisas que podem ser os primeiros sinais de gastroenterite.
Lavar as
mãos de forma correta ainda é a melhor maneira de prevenir a contaminação entre
as pessoas.
Percentagem Nacional de
incidência (casos por 100 mil habitantes) de diarreia aguda com início
epidêmico, invernos de 2007-2008, 2008-2009 e 2009-2010, dados da rede
Sentinelles (algo como Sentinelas), 02 de maio de 2010.
1 Uma incapacitação parcial e insidiosa que pode passar
despercebida por quem sofre e por aqueles ao redor dele ou dela (da revista
Médicine aérospatiale, segunda edição, 1999)